sábado, 31 de julho de 2010

Requiem pelos vivos

Um calor trespassou a neblina petrificada sob o esquecimento de um híbrido luar, sangrado de uníssonos e calvos monólogos ultra-romantescos. Acordam vozes gritantes uns velhos caquéticos que, trespassados sob suas memórias, acalentam o cantar das gaivotas na baixa da cidade liberal. Algoritmos dialéticos prendem os passos duns desorientados que vão a caminho do sono, enquanto o ar impele à inalação do rejuvenescimento matutino. Carlos pousa o jornal na mesa, enquanto deambula um cigarro pre-mortem, pronto a consumir a chama que o acende e a alma penada que o há-de findar. Acabara de acordar com o pensamento convergente na conversa da anterior noite. Henrique tinha razão. Melhor, uma ponta de razão, pois os vintes apenas se protribuem a deus, os dezanove ao seu filho, os dezoito a si, e os dezassete aos amigos. Era puro pensamento escatológico, e apesar da contenda, Henrique lá merecia o seu 13 por ter sido pouco amigo com sua respeitabilidade e digníssima virtude. Afinal a cidade não dormia, dormiam sim os homens que corroíam os egos zombies. Matilde, luante, leva duas metades de uma torrada ao estômago afim de fingir a apoquentação.
- Quer café ou uma meia-de-leite?
A sujeita, de vestido tribal e com aspecto de quem não acabou a noite, levava consigo os restos do pequeno almoço de ambos, enquanto Carlos mantinha hirto o pensamento no Público.
- Este jornalismo... Estes Ultra-Liberais querem dar uma machadada no Estado Social. Diderot e Voltaire tremem em copas no fosso.
- Um café.
- E a conta por favor.
Saíram, e à entrada do café, Carlos acendeu misericordiamente un cigar.
Galoparam então da Rua Galerias de Paris aos Aliados, mantendo a mesma distância tumultuosa, quase hermenêutica, quase profética, quase jesuíta, que, ao mínimo barulho de uma buzinadela, o homem de barbas e estilo londrino franzia o capitólio uterino da mágoa cessante, e esquecendo o decoro contemporâneo, protestava:
- Andar a pé faz-nos bem Matilde. Olha o que te disse o Dr António do Santo António.
Matilde, mecanicamente, retorquiu que sim, era efectivamente uma dádiva de deus terem pernas para andar, apontando na direcção da Irgeja de S Bento onde um pedinte amputado tentava desesperadamente andar e também obter esmola. - Deus o guarde-, e ouviu-se um breve tilintar de cinquenta cêntimos de euro na chapa velha do malogrado.
- É para a droga, já o sabes. Eu cá não caio nessa, ora pois!
- A caridade não liga motivações a factos. São como as tuas aulas, querido... E riu-se tremidamente mas com zelo.
- Pois, se o Direito fosse uma esmola, ouvirias o eco do tilintar durante uma eternidade.
Dito isto, pouco tempo para cinismo teve, já que havia chegado destino.
- O i, por favor.
- São um euro e sessenta cêntimos.

1 comentário:

Gabriel Má-Vida disse...

Muito bom o texto! Parabens pelo blog ;)

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