sexta-feira, 18 de abril de 2008

shamisen


(parte III) NAMBANJIN

Garcia aproximou-se então de Tanamori, procurando uma conversa mais descontraida entre os dois. Tinham percorrido os corredores da casa em ameno diálogo, mas Garcia sentia-se agitado e impaciente. A vontade de vingar aqueles que vira morrer não aplacara, e os calmos ares de inverno já não sortiam nele a alegria de estar vivo.
Questionou Tanamori sobre sua identidade e porque o tinha salvo, e soube que fora Tanamori que havia falado com os padres Jesuítas que tinham contratado os seus serviços. A princípio pensou que ele os tinha emboscado, mas percebeu que tal não faria sentido, visto que Tanamori não só o tinha salvo, como precisava muito dos seus serviços. Tanamori era um leal servidor do imperador, que ainda era um jovem rapaz. Nas suas viagens pela China e pela Coreia, ouviu falar de um povo de raça branca que havia aportado por aquelas bandas há poucos anos, e que regularmente fazia umas visitas não raras vezes clandestinas. Depois, esse mesmo povo chegou a Nagasáki, e falou-se por todo o Japão que os brancos altos e narigudos, nambans do sul, nambanjin como ficaram conhecidos, possuiam poderosas armas de fogo e mestria impar na condução de navios no mar, que tinham bem aparelhados e artilhados com as mesmas armas. De forma a derrotar os seus oponentes, e unir o Norte do Japão em nome do imperador, Tanamori conseguiu falar com homens religiosos desse povo. No entanto, mal estes haviam chegado, um exército dos seus inimigos do clã Hideyoshi seguiram a sua caminhada desde a cidade de Nagoya, o porto que dá acesso ao norte do Japão, e massacraram-nos, apenas falhando em roubar as suas armas e bagagens, socorridas a tempo pelos homens de Tanamori.
- Pena que se tenham apenas salvo os haveres, e perdido os homens - ressalvou Garcia - ter-te-iam sido de grande valia nas lutas que virão.
- Não te escondo a minha alegria, estrangeiro, por teres sobrevivido - Tanamori falava sem excessiva alegria, sempre moderadamente - Em nome do imperador, os serviços dos da tua raça serão compensados em ti. Agradecia que ensinasses os meus homens a usar estas armas como os teus usam. No entanto, compreendo que estejas triste e cansado. Não te obrigarei a ficar aqui. Pagar-te-ei o regresso a Nagoya, onde ficarás hospedado às minhas custas enquanto esperas por um dos barcos do teu povo. O que não deve tardar, pois os teus são conhecidos pela Ásia fora como uma raça de gentes inquieta e amaldiçoada pela vontade de navegar, de perder terra e morrer no mar. Por grandes guerreiros e sábios que sejam, custa-me a crer que um povo navegante e difícil de contentar se poderá governar e manter tão bem como o nosso, pacífico e sereno. Tenho aqui algo que deverás gostar, no entanto.
E apresentou-lhe um farrapo branco, no entanto limpo e cuidado, onde se podia ver as armas de Portugal. Garcia ficou comovido com o gesto de Tanamori, e curvou-se para agradecer o magnânimo gesto. Era de facto uma prenda gloriosa, honrada. Disse-lhe que esta era a bandeira do seu país, dos seus reis e das suas cidades, dos seus exércitos e navios, uma bandeira que lhes havia sido dada por Deus, segundo as lendas, mal sabendo Garcia que a razão das quinas é puramente monetária e arrogadora de direitos.
- Também no Japão os guerreiros têm particular amor pelas suas bandeiras, morrem por elas. Significam a honra dos seu senhor e da Casa desse senhor.
- Em Portugal, a bandeira é de todos, e tanto é o símbolo do Rei, como da res publica, do povo e dos senhores, dos homens de religião e das raças, povos e credos que sobre ela vivem em paz. Tanto é o seu significado, que fala-se de um português que perdeu os dois braços a defender a bandeira e só a perdeu porque lha arrebataram dos dentes, para depois esta ser de novo recuperada numa investida quase suicida de um cavaleiro nosso. Eu já a servi muitas vezes. Fiz coisas por ela que não faria noutras situações. Ela une-nos, mesmo para as más acções. Tal como todas as bandeiras, daymio.
- Fala-se do orgulho dos teus, um orgulho ainda assim não ofensivo para os outros.
- É o que nos distingue dos castelhanos, meu senhor.
- Não conheço esses homens, nem nunca ouvi falar deles. Estranho que sintas esse orgulho no teu povo. No Japão, o Imperador é Homem e Deus. Ele une o Sol e a Terra, e todo o Japão vive sob a sua égide de paz. Ou pelo menos assim deveria ser. Ele cuida dos seus filhos, e todos no Japão têm direito à sua dignidade devido à sua acção civilizadora, e todos têm direito a viver e a morrer na sua terra. Porque é que o teu Rei obriga os seus a morrer longe de casa? A lutar e degladiar-se longe de casa, esquecendo a casa dos seus antepassados? Porque é que o teu povo navega e comercia, em vez de plantar a terra, cultivar os templos, amar a família e a harmonia, honrar-se a si e aos filhos? A morte cruel dos teus seria impensável ao Imperador do Japão, pois este nunca deixaria que os seus filhos partissem numa missão arriscada e sem possibilidade de honrar os mortos.
- É esta a vontade do meu povo, senhor. Escolhemos o nosso líder, batemos os nossos inimigos, criamos a nossa cultura, e vivemos do mar porque ele é o nosso amigo. E somos unidos debaixo de um estandarte, por muito que sejamos diferentes e rivais, estamos unidos na adversidade. Os teus, no entanto, lutam entre si, na própria casa. Isto nunca aconteceria entre o meu povo. Derramar sangue irmão é pecado. Lutas por um imperador que dizes ser Deus, pois eu vi esse imperador em Kyushyu e ele era uma criança. Como podem homens viver em paz debaixo do seu governo?
- O imperador é o Japão, Garcia. Se ele é jovem e inconsciente, também o é o Japão. Quando ele for mais velho e sábio, o Japão será uma nação forte e estável como nenhuma outra. Compreenderás o Oriente, um dia. Há muito que vocês Portugueses cá andam, mas não nos perceberam. Os Ocidentais são severos arrogantes, e só a si chamam a razão. Não conseguem ver que no Oriente, as aparências enganam, e há mais numa flor do que meras pétalas e sementes.
- Senhor Tanamori, em muitas coisas somos iguais, e teríamos sido bons amigos caso não houvesse milhas infinitas de mar a separar-nos. Gostaria que aceitasse os meus serviços e o meu mister de soldado ao serviço da tua nobre causa.
Tanamori assentiu, com benevolência e serenidade, ao pedido do português. Ensinou-lhe os métodos de combate usados naquelas terras, e com quantos homens poderia contar por batalha. Também lhe ensinou como se comportar em sociedade, inclusivamente à mesa, pois os rituais naquelas partes diferiam dos do Sul Japonês, que era mais conhecido de Garcia. Dotou-o de armadura e de armas, que Garcia achou perfeitamente bem desenhadas, e cedo começou a formação do sobrevivente nas artes da espada japonesa. Em troca, Garcia, ensinou os ferreiros de Tanamori a fabricar os arcabuzes, as armas que os portugueses usavam, e iniciou a construção de um exército de arcabuzeiros entre os samurais, a quem treinou de acordo com as técnicas portuguesas, as mais eficientes e modernas da época.
O grande objectivo seria dar combate aos Hideyoshi, assassinos e execráveis rivais da Casa de Taina, e derrotá-los definitivamente com a sabedoria das armas e da tecnologia, retirando da obscuridade e do isolamento larga parte do Japão nortenho e rebelde às ordens imperiais.
Assim começou a história de Garcia Rodrigues, natural da antiga cidade de Lamego, das mais respeitadas da Península, e moço da Casa de Ataíde, que serviu desde os 14 anos na armada da Índia por não achar no serviço de um senhor honra suficiente para um mancebo. Viveu em Goa, em Luanda, viajou por muitos e perigosos lugares, tendo sido distinguido durante o terrível cerco de Diu, onde se bateram com bravura os portugueses. E como entre a vida e a morte, já disse o poeta que mais serviu a causa do Império, todos os dias são dele, esta é uma das muitas histórias que Garcia Rodrigues viveu, antes de fechar em si o livro da existência.
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