quinta-feira, 27 de março de 2008

shamisen


(parte II)Sakura

"Meu nome é Tanamori, do clã Taina. Eu sou o chefe desta casa e tu, gaijin, és o meu convidado. Nada deves temer enquanto cá estiveres."
O samurai falava de forma directa e limpa, honrando os preceitos da sua nobre casta, ao mesmo tempo reconfortando o seu hóspede.
"O meu nome é Garcia Rodrigues, da casa dos Ataíde, e sou da cidade de Lamego, no distante reino de Portugal. Ou pelo menos ainda o era quando de lá saí. Compreendes o que eu digo?"
"Dominas a língua deste país como poucos nambanjin antes de ti. Já me tinham falado da perspicácia dos bárbaros, e vejo que não eram apenas rumores. Poucos homens sabem dominar a língua tão bem como a espada, se bem que eu diria que enquanto a tua língua é uma fénix voadora, o teu uso da espada ainda não passa de um fruto por colher."
Garcia soube nesse momento que o homem com quem falava o observara, podia até ter estado comprometido com o ataque que ele e a sua comitiva haviam sofrido.
Acompanhara uma comitiva de 11 homens, recrutada em Goa, a chamada Gloriosa Roma do Oriente e cidade dos vice-reis. Essa comitiva era composta por um goês e 10 portugueses, 2 deles padres jesuítas, líderes da expedição, que tinham requisitado o serviço dos restantes, considerados os melhores mestre-espadas do império da Ásia, como seus acompanhantes e guarda-costas. Segundo os padres, tinham sido convidados por um grande senhor do país dos Japões para partilhar os seus conhecimentos de pólvora e das coisas da guerra. Não fosse a terrível emboscada que tinham sofrido, e talvez tivessem cumprido essa missão com sucesso.
"Estávamos em grande falta de números contra tais inimigos, distinto senhor. Fomos atacados por gentes armadas com chuços e pequenas espadas. Perdi muitos e valentes companheiros de viagem. Aquele que me derrubou durante o combate permitiu que eu não visse o desfecho da trágica batalha, e não sei do paradeiro dos poucos que sobreviveram ao ataque surpresa."
"Quando eu lá cheguei, todos estavam mortos". Garcia mostrou-se apreensivo. "Vejo que tinhas companheiros entre os que se perderam naquele dia..."
"Mais do que meros companheiros, eram meus bons amigos. Entre esses homens vinha Mestre Julião, muito conhecido nas Índias pela sua perícia da espada e do mester de físico. Ele e vários outros serviram comigo no famoso cerco de Diu."
"O Japão está muito longe dos sítios de que falas. A meu ver, perderam-se homens que passaram por grandes dificuldades e eram dignos de grandes honras. O que é algo lastimável, visto que padeceram às mãos de gente baixa, ladrões e ronin baratos."
"Ronin?" perguntou o português.
"De certeza que deste país só conheces as gentes e expressões das cidades. Um ronin é um samurai caído em desgraça, que perdeu seu amo e não teve a coragem de cometer seppuku, em honra dele. Por vezes são até muito hábeis no manejo das armas, mas a sua pobreza de espírito vale-lhes o baixo estatuto que têm entre nós, e são contratados como meros servos para trabalhos sujos que um verdadeiro samurai não é digno de fazer. Presumo que entre vocês também se dão tais acontecimentos."
"Não, não sei bem a que te referes. Sei que já vi fidalgos de grandes famílias servir nos regimentos e nos terços de infantaria como o mais comum dos vilãos. Entre nós portugueses a superioridade de qualidade das gentes não é soberba, como no caso dos castelhanos e dos do reino de França, se bem que nos últimos anos, dizem os mais velhos, a tendência tem vindo a se comparar em orgulho e desprezo entre os nobres."
"Na nossa terra, ser nobre é ser servidor dos mais fracos, não é algo de que nos devamos vangloriar, mas antes estimar e sentir orgulho."
"Ainda há grandes portugueses que também assim pensam, daymio Tanamori, mas no Ocidente cada vez menos são os humildes. Talvez agora possas tu me responder a algumas das minhas questões."
Tanamori estacou por breves segundos, sem contudo perder a compostura. O Estrangeiro estava em seu poder, e era agora hóspede da sua casa. No entanto, estes bárbaros de raça pálida pareciam-lhe excessivamente curiosos e atrevidos para compreenderem o ritualizado cerimonial do Oriente, e a sua falta de paciência, além de proverbial, era acompanhada de uma argúcia de espírito fantástica. Tanamori começava então a admirar tanto o homem que tinha à sua frente, como a tomar cuidado com o que lhe poderia desvendar.
"Dir-te-ei aquilo que me parecer apropriado dizer, nambanjin."

nota: esta pequena história, inspirada num pequeno livro de lendas japonês, adaptada à nossa língua, ao nosso contexto histórico e cultural, e à minha imaginação, é o projecto definitivo a que se vai consignar este meu blogue. no interesse da divulgação das culturas do mundo, vou tentar proliferar estes meus pequenos trabalhos, e espero que com isto vá aguçar a curiosidade dos visitantes.
acompanho com esta nota um pequeno dicionário de expressões, para que quem leia se vá direccionando, e de algumas noções e curiosidades.

gaijin - nome dado pelos japoneses aos estrangeiros. a sua utilização tem se rareado, devido ao facto de recentemente esta designação ter ganho valor perjurativo.

nambanjin - nome dado aos portugueses pelos japoneses, significando bárbaros do sul.

Japões - nome primitivo dado pelos primeiros viajantes portugueses aos habitantes da ilha nipónica.

cerco de Diu - episódio importantíssimo da presença da civilização europeia no subcontinente indiano, o cerco de Diu chama-se assim por se ter situado na cidade de Diu, onde uma pequena força de 500 portugueses aguentou, por duas vezes, um duro cerco de meses. Essas acções de guerra foram tomadas ou pelo imperador mogol da Índia, ou pelos turcos otomanos, inimigos da presença portuguesa na Índia.

Mestre Julião - personagem real, herói do primeiro cerco de Diu.

daymio - espécie de senhor feudal no Japão, os mais poderosos tinham ao seu serviço milhares de samurais, o equivalente aos cavaleiros da Europa Medieval.

seppuku - prática comum entre os samurais, de cometer suicídio para não perder a honra tribal.

vilãos - no sentido do texto, e contextualizando o sentido histórico, não deve ser entendido como alguém apto para actos vis, mas sim alguém cuja classe se encontra entre os não-privilegiados, ou seja, do Povo.

terça-feira, 4 de março de 2008

shamisen


(parte I) LÓTUS

Uma fresca brisa de madrugada entrava por entre os biombos, acordando-o docemente dos lençóis de linho branco. Levantou-se com um jeito desajeitado, cambaleando confusamente para fora do quarto. Lá fora sentia-se o Inverno de Janeiro nas cerejeiras em flor, com leves pinceladas de branco e de castanho, num sereno sentido de sossego, adornando o jardim.
Percorreu o corredor de soalho castanho, apoiando-se no corrimão de madeira e nas finas colunas, até às escadas. Desceu-as vagarosamente, e pousou os pés descalços na terra fresca, brincando com o orvalho da relva por entre os intervalos dos dedos. Apetecia-lhe ajoelhar... estava quase nu ao frio, ligado por faixas brancas nos ferimentos das costas e do peito, que deitavam um perfume acre de urze ou qualquer outro tipo de curativo, e vestia um saiote de lã negro que lhe tapava as pernas até às canelas. Ispirou fortemente todo o ar, e apreciou o leve aroma do jardim. Estava cansado ainda. E sem saber onde se encontrava, o velho sentido de exploração levara-o quase involuntariamente a procurar ar fresco para respirar. Certos homens não são feitos para camas, já lhe dizia a mãe. Ele não o fora. Aos 14 anos fugiu de casa e embarcou na primeira nau que encontrou. Sabia-lhe melhor a rede de dormir do marinheiro que a cama do cortesão.
Assustou-se com um aconchegado toque nas costas, e virou-se custosamente para trás. Aí, um homem vestido com um kimono branco envolvia-o num cobertor de peles.
"Vejo que acordaste" disse o homem."Sim", respondeu-lhe em nipónico, a língua do homem, "estou a falar com o meu generoso anfitrião?" e o homem fez-lhe sinal que o seguísse. Lá dentro alguém tocava um intrumento de corda, e ouvia-se uma voz feminina a acompanhar o recital. Devia ser uma professora a repreender a sua aluna, pensou. "Perdoa a minha jovem filha, gaijin, ela ainda está a aprender a tocar o shamisen." Então era assim que soava o shamisen, o famoso instrumento que tanto lhe falaram em Nagoya. Não lhe importava nada os desafinos da jovem, mesmo tocado impropriamente o som produzido pelo instrumento era belo.
Foi convidado a sentar-se e a tomar a refeição, e seguiu os modos dos habitantes da casa de sentar à mesa. A sala de jantar estava rodeada de uma aura de serenidade, e tons claros de beje e escuro. Sentou-se à direita do homem do kimono, enquanto as suas filhas se sentaram à sua esquerda, de acordo com uma etiqueta já há muito integrada. A mulher e as três filhas eram pequenas de estatura, se bem que elegantes, usavam todas, à excepção da mãe, o cabelo preso, que esta usava solto e pujante, de um escuro brilhante extremamente liso. Estavam vestidas com simplicidade, vestindo-se à japonesa, com um kimono comprido mas despadronizado, de cores simples branca e azul. Não esboçaram nenhuma reacção à presença do estrangeiro.
Comeu frugalmente, com o receio de desagradar ao dono da casa, e em profundo silêncio, tal como toda a família presente no jantar. A atmosfera de equilíbrio e harmonia reinante ajudaram-no a recompor os sentidos, e os seus músculos perderam a rigidez com o perfume inebriante do incenso e do saké.
Após o fim da refeição, todos se levantaram ao sinal do homem do kimono, e foi ordenado a uma das mulheres da casa que cuidasse das comodidades do convidado.
Dentro de um pequeno compartimento, a jovem encarregada, porventura uma das criadas da casa, despiu-o suavemente, quase sem lhe tocar com os dedos, e substituiu-lhe as gazes e as ligaduras. Estava pronto em menos de meia-hora, já com o gibão posto e o saiote. Quis expressar gratidão para a mulher, mas esta partiu apressadamente do quarto.
Sentia-se preso. Não sabia onde estava, perdido num mundo diferente, à mercê de um senhor poderoso da região. De um daymio, um senhor feudal japonês, titular da vida de centenas, senão de milhares de guerreiros.
Passos dirigiam-se para o seu compartimento, avançando lestos e sem demora. Preparou-se.

sentimentalismos

hoje sinto-me assim

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