terça-feira, 4 de março de 2008

shamisen


(parte I) LÓTUS

Uma fresca brisa de madrugada entrava por entre os biombos, acordando-o docemente dos lençóis de linho branco. Levantou-se com um jeito desajeitado, cambaleando confusamente para fora do quarto. Lá fora sentia-se o Inverno de Janeiro nas cerejeiras em flor, com leves pinceladas de branco e de castanho, num sereno sentido de sossego, adornando o jardim.
Percorreu o corredor de soalho castanho, apoiando-se no corrimão de madeira e nas finas colunas, até às escadas. Desceu-as vagarosamente, e pousou os pés descalços na terra fresca, brincando com o orvalho da relva por entre os intervalos dos dedos. Apetecia-lhe ajoelhar... estava quase nu ao frio, ligado por faixas brancas nos ferimentos das costas e do peito, que deitavam um perfume acre de urze ou qualquer outro tipo de curativo, e vestia um saiote de lã negro que lhe tapava as pernas até às canelas. Ispirou fortemente todo o ar, e apreciou o leve aroma do jardim. Estava cansado ainda. E sem saber onde se encontrava, o velho sentido de exploração levara-o quase involuntariamente a procurar ar fresco para respirar. Certos homens não são feitos para camas, já lhe dizia a mãe. Ele não o fora. Aos 14 anos fugiu de casa e embarcou na primeira nau que encontrou. Sabia-lhe melhor a rede de dormir do marinheiro que a cama do cortesão.
Assustou-se com um aconchegado toque nas costas, e virou-se custosamente para trás. Aí, um homem vestido com um kimono branco envolvia-o num cobertor de peles.
"Vejo que acordaste" disse o homem."Sim", respondeu-lhe em nipónico, a língua do homem, "estou a falar com o meu generoso anfitrião?" e o homem fez-lhe sinal que o seguísse. Lá dentro alguém tocava um intrumento de corda, e ouvia-se uma voz feminina a acompanhar o recital. Devia ser uma professora a repreender a sua aluna, pensou. "Perdoa a minha jovem filha, gaijin, ela ainda está a aprender a tocar o shamisen." Então era assim que soava o shamisen, o famoso instrumento que tanto lhe falaram em Nagoya. Não lhe importava nada os desafinos da jovem, mesmo tocado impropriamente o som produzido pelo instrumento era belo.
Foi convidado a sentar-se e a tomar a refeição, e seguiu os modos dos habitantes da casa de sentar à mesa. A sala de jantar estava rodeada de uma aura de serenidade, e tons claros de beje e escuro. Sentou-se à direita do homem do kimono, enquanto as suas filhas se sentaram à sua esquerda, de acordo com uma etiqueta já há muito integrada. A mulher e as três filhas eram pequenas de estatura, se bem que elegantes, usavam todas, à excepção da mãe, o cabelo preso, que esta usava solto e pujante, de um escuro brilhante extremamente liso. Estavam vestidas com simplicidade, vestindo-se à japonesa, com um kimono comprido mas despadronizado, de cores simples branca e azul. Não esboçaram nenhuma reacção à presença do estrangeiro.
Comeu frugalmente, com o receio de desagradar ao dono da casa, e em profundo silêncio, tal como toda a família presente no jantar. A atmosfera de equilíbrio e harmonia reinante ajudaram-no a recompor os sentidos, e os seus músculos perderam a rigidez com o perfume inebriante do incenso e do saké.
Após o fim da refeição, todos se levantaram ao sinal do homem do kimono, e foi ordenado a uma das mulheres da casa que cuidasse das comodidades do convidado.
Dentro de um pequeno compartimento, a jovem encarregada, porventura uma das criadas da casa, despiu-o suavemente, quase sem lhe tocar com os dedos, e substituiu-lhe as gazes e as ligaduras. Estava pronto em menos de meia-hora, já com o gibão posto e o saiote. Quis expressar gratidão para a mulher, mas esta partiu apressadamente do quarto.
Sentia-se preso. Não sabia onde estava, perdido num mundo diferente, à mercê de um senhor poderoso da região. De um daymio, um senhor feudal japonês, titular da vida de centenas, senão de milhares de guerreiros.
Passos dirigiam-se para o seu compartimento, avançando lestos e sem demora. Preparou-se.

2 comentários:

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