Embaraçoso, mas mesmo embaraçoso, é confundir alguém no que toca à sua identidade sexual, ou seja, no que toca a ser homem ou mulher. Talvez mais embaraçoso, mas mesmo mais embaraçoso, seja ser confundido. Definitivamente, mais embaraçoso é ser confundido.
Pessoalmente sempre foi algo que me afligiu até ao âmago da mais íntima aflição, o simples e fugaz erro de, acidentalmente, por exemplo, pensar que lá por aquela criatura que serve bagaço num tasco qualquer, à beira da junta da minha freguesia, apenas pelo facto de ser surpreendentemente mal parecida, não possa obrigatoriamente ser mulher. É frustrante, realmente frustrante, se pensarmos que a grande maioria de serventes de bagaço em tascos são mulheres. Ora tudo indica que aquele ser tão repelente na sua vertente feminina, seja por isso uma mulher. Ah, desenganam-se os positivistas! Nem a mais clara racionalidade pôde absolver-me deste sentimento de culpa por manter a minha dúvida sobre a tal identidade sexual daquele Ser. Aquilo que eu pensei nomear de factor vox traiu-me mordazmente, quando o destino fez-me passar pela suposta senhora na rua, após a humilhante e inapropriada tarefa imposta a um sujeito intelectualmente desportivo como eu de "ir comprar pão e ovos", tanto que ia aborrecidíssimo de saca na mão com os tais bens alimentares, e "ela" decidiu lançar-me um viril e masculino "tudo bem?". Apanhado "desprevenido" pela simpatia daquela voz poderosa, esforcei-me para retribuir com um portentoso "Olá Sra. ..." que de indeciso saiu-me "frouxo", digo, frouxo. Longe da vista da até agora "Senhora do Tasco", que se afastou pesarosamente depois do meu amaricado cumprimento, talvez "ela/ele" com dúvidas não àcerca da minha identidade mas sim da minha heterossexualidade, fui acometido de uma quase divinal necessidade de proceder com o meu dever de cidadão, e não parar até descobrir se aquele pedaço de ambulante humanidade era Homem ou Mulher. Tal foi o ímpeto de descoberta, que corri pelas ruas da minha localidade, tão cheio desta energia, desta iluminação e apego pela pesquisa e pela indagação, quem sabe talvez inspirado por certas divindades que me tomaram sobre sua protecção.
Ao chegar a casa, os efeitos desta triunfal corrida foram sentidos na enorme desilusão de me deparar com os ovos feitos em pedaços e misturados com os pãezinhos. Na confusão da corrida haviam-se partido. Fiquei desolado, mal começara a minha investigação, já tinha sangue, neste caso claras de ovos, nas minhas mãos, e devido à pegajosidade daquele material, pela torneira e banca da cozinha. E os pãezinhos, lamento dizê-lo, arruinados ficaram.
Após as exéquias daquele que poderia ter sido um óptimo almoço, agora deitado pelo balde do lixo abaixo à espera do seu brutal fim, decidi entregar-me de corpo e alma à minha nova luta. Comecei por executar vários e camuflados inquéritos, tanto a familiares como aos poucos vizinhos com quem me dou ao desplante de me dar. Um dos métodos passava por esta inteligente pergunta, tão matreira que todos os meus inquiridos caíram sorrateiramente nela "Desculpe, como se chama a ... a pessoa da tasca ali perto da junta?" ao que uma larga maioria respondia "A pessoa? Então agora pergunta-se assim pelas... pessoas?" ao que eu rectificava "Sim, sabe... a que atende lá na tasca ao pé da junta, como se chama essa... pessoa? A ... pessoa com a voz muito grossa, sabe?..." "Ah! Ó rapaz, tu muito tens dessas manias tuas, não é? Até vai ali a passar... Ó Ferreira, anda cá Ó Ferreira!" "Não, não tem de o chamar, diga-me só quem é, como se chama a tal pessoa de apelido Ferreira" "Mas já te disse, rapaz, é ...( e agora viria o momento da verdade, em que o uso de uma preposição "o" ou "a" permitir-me-ia definir a masculinidade ou feminilidade da entidade Ferreira)... é... Ó Ferreira, anda cá que o rapaz não pára de me perguntar sobre ti, pá!". Das seis vezes que isto me aconteceu fiquei ali, embasbacado em frente àquele enorme baobá Ferreira, apenas para lhe perguntar se as coisas com o seu primo que estava a viver na França estavam bem. Cedo começaram a correr rumores na vila sobre o meu súbito interesse pelo primo de "Ó Ferreira", entre os quais o eterno, clássico e tão rural problema de umas partilhas de terra "que o Juvenal (o nome do primo) herdou da tia Cacilda de Medregós de Baixo", e que por via de uma bisavó, deviam pertencer a mim(é incrível como a genealogia torna-se uma ciência popular nestes meios agrícolas). Outra mais sinistra pendia por causa da compra de um burro que o Juvenal efectuara, burro esse que teria defecado à minha porta, e o medo de represálias teria levado o Juvenal a emigrar forçadamente, ou fugir, para a França.Desconheço totalmente este caso, nem acho que alguma vez me aconteceu defecarem-me à porta. A verdade é que o primo Juvenal, que vinha passar estas férias a Portugal, foi discretamente avisado pela mãe para não vir, porque "te matam Juvenal, a ti mais o burro!".
Eu sou definitivamente gente de cidade, e mal podia sequer imaginar as consequências dos meus inquéritos. Receoso que as coisas entrassem pela via das queixas jurídicas, ou mesmo um assassínio a sangue frio, resolvi deixar cair por terra os meus planos de busca por objectos de higiene pessoal do suspeito Ferreira. Mais tarde nessa semana, ouvi dizer que a família do Juvenal estava a planear vender todas as suas propriedades lá para os lados de Baguncelos, e enviaram-me a sobrinha preferida da mãe do tal emigrante para vir parlamentar comigo. Recebi a ansiosa proposta monetária em troca da garantia de deixar o primo Juvenal e a prima Ferreira em paz e sossego. Ora ai estava! A prima afinal de contas era "uma" prima, e chamava-se Clotilde Ferreira, ao que me pude aperceber. Estranhada com os meu pulos de felicidade após desfecho de tão insólito caso, a sobrinha pediu-me para eu misericordiosamente permitir-lhe voltar a casa, sem qualquer tipo de estropiação corporal ou ofensas à sua honra. "Óh rapariga, vai à tasca da Junta e chama-me a tua prima! Eu esclareço isto tudo já" Clotilde entrou pela minha porta, a tremer que nem varas verdes em dia de apanha, e contei-lhe que podia atravessar a serra do Pedrolho em direcção à casa da sua tia, e dizer-lhe que não há perigo nenhum, tudo se tratava de umas perguntas que eu fizera por um suposto interesse inofensivo nela, não no primo Juvenal. A menina Ferreira ficou tão lisonjeada com este elogio, tão precioso entre os raros que os seus atributos físicos considerados pela cruel sociedade pouco atraentes lhe permitiram receber, que perguntou logo toda familiarizada qual era o motivo das minhas perguntas sobre ela "É que eu queria saber se a menina Clotilde era Homem ou Mulh... Clotilde, baixe essa cadeira, Clotilde é uma cadeira cara, Clotilde não, nããããão!" Nesse mesmo dia a Sra. Ferreira partiu-me toda a minha colecção de Cds do David Bowie, pérolas perdidas para sempre. Mais estragos causou-me aquela mulher peluda que qualquer ex. É claro que é escusado dizer que fiz uma chamada anónima ao primo Juvenal, e ele só se atreve agora a vir cá passar férias durante os últimos três dias da Páscoa e escondido no porta bagagens. E o burro fica em França.
Pessoalmente sempre foi algo que me afligiu até ao âmago da mais íntima aflição, o simples e fugaz erro de, acidentalmente, por exemplo, pensar que lá por aquela criatura que serve bagaço num tasco qualquer, à beira da junta da minha freguesia, apenas pelo facto de ser surpreendentemente mal parecida, não possa obrigatoriamente ser mulher. É frustrante, realmente frustrante, se pensarmos que a grande maioria de serventes de bagaço em tascos são mulheres. Ora tudo indica que aquele ser tão repelente na sua vertente feminina, seja por isso uma mulher. Ah, desenganam-se os positivistas! Nem a mais clara racionalidade pôde absolver-me deste sentimento de culpa por manter a minha dúvida sobre a tal identidade sexual daquele Ser. Aquilo que eu pensei nomear de factor vox traiu-me mordazmente, quando o destino fez-me passar pela suposta senhora na rua, após a humilhante e inapropriada tarefa imposta a um sujeito intelectualmente desportivo como eu de "ir comprar pão e ovos", tanto que ia aborrecidíssimo de saca na mão com os tais bens alimentares, e "ela" decidiu lançar-me um viril e masculino "tudo bem?". Apanhado "desprevenido" pela simpatia daquela voz poderosa, esforcei-me para retribuir com um portentoso "Olá Sra. ..." que de indeciso saiu-me "frouxo", digo, frouxo. Longe da vista da até agora "Senhora do Tasco", que se afastou pesarosamente depois do meu amaricado cumprimento, talvez "ela/ele" com dúvidas não àcerca da minha identidade mas sim da minha heterossexualidade, fui acometido de uma quase divinal necessidade de proceder com o meu dever de cidadão, e não parar até descobrir se aquele pedaço de ambulante humanidade era Homem ou Mulher. Tal foi o ímpeto de descoberta, que corri pelas ruas da minha localidade, tão cheio desta energia, desta iluminação e apego pela pesquisa e pela indagação, quem sabe talvez inspirado por certas divindades que me tomaram sobre sua protecção.
Ao chegar a casa, os efeitos desta triunfal corrida foram sentidos na enorme desilusão de me deparar com os ovos feitos em pedaços e misturados com os pãezinhos. Na confusão da corrida haviam-se partido. Fiquei desolado, mal começara a minha investigação, já tinha sangue, neste caso claras de ovos, nas minhas mãos, e devido à pegajosidade daquele material, pela torneira e banca da cozinha. E os pãezinhos, lamento dizê-lo, arruinados ficaram.
Após as exéquias daquele que poderia ter sido um óptimo almoço, agora deitado pelo balde do lixo abaixo à espera do seu brutal fim, decidi entregar-me de corpo e alma à minha nova luta. Comecei por executar vários e camuflados inquéritos, tanto a familiares como aos poucos vizinhos com quem me dou ao desplante de me dar. Um dos métodos passava por esta inteligente pergunta, tão matreira que todos os meus inquiridos caíram sorrateiramente nela "Desculpe, como se chama a ... a pessoa da tasca ali perto da junta?" ao que uma larga maioria respondia "A pessoa? Então agora pergunta-se assim pelas... pessoas?" ao que eu rectificava "Sim, sabe... a que atende lá na tasca ao pé da junta, como se chama essa... pessoa? A ... pessoa com a voz muito grossa, sabe?..." "Ah! Ó rapaz, tu muito tens dessas manias tuas, não é? Até vai ali a passar... Ó Ferreira, anda cá Ó Ferreira!" "Não, não tem de o chamar, diga-me só quem é, como se chama a tal pessoa de apelido Ferreira" "Mas já te disse, rapaz, é ...( e agora viria o momento da verdade, em que o uso de uma preposição "o" ou "a" permitir-me-ia definir a masculinidade ou feminilidade da entidade Ferreira)... é... Ó Ferreira, anda cá que o rapaz não pára de me perguntar sobre ti, pá!". Das seis vezes que isto me aconteceu fiquei ali, embasbacado em frente àquele enorme baobá Ferreira, apenas para lhe perguntar se as coisas com o seu primo que estava a viver na França estavam bem. Cedo começaram a correr rumores na vila sobre o meu súbito interesse pelo primo de "Ó Ferreira", entre os quais o eterno, clássico e tão rural problema de umas partilhas de terra "que o Juvenal (o nome do primo) herdou da tia Cacilda de Medregós de Baixo", e que por via de uma bisavó, deviam pertencer a mim(é incrível como a genealogia torna-se uma ciência popular nestes meios agrícolas). Outra mais sinistra pendia por causa da compra de um burro que o Juvenal efectuara, burro esse que teria defecado à minha porta, e o medo de represálias teria levado o Juvenal a emigrar forçadamente, ou fugir, para a França.Desconheço totalmente este caso, nem acho que alguma vez me aconteceu defecarem-me à porta. A verdade é que o primo Juvenal, que vinha passar estas férias a Portugal, foi discretamente avisado pela mãe para não vir, porque "te matam Juvenal, a ti mais o burro!".
Eu sou definitivamente gente de cidade, e mal podia sequer imaginar as consequências dos meus inquéritos. Receoso que as coisas entrassem pela via das queixas jurídicas, ou mesmo um assassínio a sangue frio, resolvi deixar cair por terra os meus planos de busca por objectos de higiene pessoal do suspeito Ferreira. Mais tarde nessa semana, ouvi dizer que a família do Juvenal estava a planear vender todas as suas propriedades lá para os lados de Baguncelos, e enviaram-me a sobrinha preferida da mãe do tal emigrante para vir parlamentar comigo. Recebi a ansiosa proposta monetária em troca da garantia de deixar o primo Juvenal e a prima Ferreira em paz e sossego. Ora ai estava! A prima afinal de contas era "uma" prima, e chamava-se Clotilde Ferreira, ao que me pude aperceber. Estranhada com os meu pulos de felicidade após desfecho de tão insólito caso, a sobrinha pediu-me para eu misericordiosamente permitir-lhe voltar a casa, sem qualquer tipo de estropiação corporal ou ofensas à sua honra. "Óh rapariga, vai à tasca da Junta e chama-me a tua prima! Eu esclareço isto tudo já" Clotilde entrou pela minha porta, a tremer que nem varas verdes em dia de apanha, e contei-lhe que podia atravessar a serra do Pedrolho em direcção à casa da sua tia, e dizer-lhe que não há perigo nenhum, tudo se tratava de umas perguntas que eu fizera por um suposto interesse inofensivo nela, não no primo Juvenal. A menina Ferreira ficou tão lisonjeada com este elogio, tão precioso entre os raros que os seus atributos físicos considerados pela cruel sociedade pouco atraentes lhe permitiram receber, que perguntou logo toda familiarizada qual era o motivo das minhas perguntas sobre ela "É que eu queria saber se a menina Clotilde era Homem ou Mulh... Clotilde, baixe essa cadeira, Clotilde é uma cadeira cara, Clotilde não, nããããão!" Nesse mesmo dia a Sra. Ferreira partiu-me toda a minha colecção de Cds do David Bowie, pérolas perdidas para sempre. Mais estragos causou-me aquela mulher peluda que qualquer ex. É claro que é escusado dizer que fiz uma chamada anónima ao primo Juvenal, e ele só se atreve agora a vir cá passar férias durante os últimos três dias da Páscoa e escondido no porta bagagens. E o burro fica em França.
1 comentário:
Muito bom! Estou orgulhoso do meu f�finho!
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