Trovejava. Muito. Em Tânger, reza a lenda, todos os emborcadouros ficam cheios de entulho quando chove. E naquele dia, bem que me pareceu que tal acontecia. Provavelmente, mais uma miragem.
O fumo do cigarro brincava suavemente por entre os meus dedos. Tu estavas irritado. Eu via que era por causa do teu poema, aquele que tu não conseguías acabar, por muito que tu me contradissesses, dizendo que era a tua asma que não ia bem com os meus hábitos de fumador. Nunca me enganaste. Nem daquela vez em que, zangado com o mundo, te deitaste no chão daquela rua Montevideu, minutos antes de teres dado uma valente cabeçada a um candeeiro eléctrico que, obviamente, usaste para simbolizar o teu desprezo pelas companhias eléctricas monopolistas e poluidoras. São momentos meus, disse-te. Pelo menos até o fumo do cigarro accionar o sistema anti-incêndios, e ensopar o meu maço todo.
Eu e a morte sentamo-nos lado a lado. Ela perguntou-me se eu tinha lume. Eu disse que tinha fósforos, e ela correu rua abaixo para apanhar o próximo táxi até à Terra da Podridão, que fica algures entre a Areosa e Rio Tinto. Incomodou-me esta visão. Sentia que a minha altura se aproximava. Um dia um velho cambojano disse-me “hoje à noite, há caracóis!” e eu prcebi que o meu destino estava selado.
Tu dizias que não. Era tolice minha. Praguejavas sempre que eu falava no faraó que tinha de ter duas cabeças (é claro, mas porquê?) para equilibrar o seu Pteh. Mas a noite empurrava-me. e seria essa noite, a noite de Tânger, noite bela por entre os seus mercados e veludos, tangível finura, somente perceptível por uma merda qualquer para a qual não tenho mais expressões endereçadas.
Oh, a humanidade. Oh, a morte. Oh, as interjeições vocais. Saí da minha tenda, já não era mais necessária a minha presença lá, a flatulência do Holandês mantinha o nosso grupo encurralado de turistas quente o suficiente, e resolvi-me a enfrentar a morte. E lá vinha o faraó, com as suas duas cabeças (é claro, mas porquê?) montado num grifo, alugado em Silves, que mais tarde seria usado num ataque bombista da ETA.
Tu disseste-me não. E eu olhei de volta. E a chuva fazia o que de melhor sabia fazer, caía a potes, tanta que dias mais tarde apanhei uma constipação, que o teu apurado faro médico se apressou a diagnosticar como uma “gripalhada do caralho”.
Não o quê? Perguntei. Não vás, pois a noite é boa, o mundo é belo, e gastar 150 euros em mobílias de proveniência sueca no IKEA dá-nos direito a uma matadumbe de vales de compras. Finalmente, valia a pena viver, pensei.
E a noite em Tânger fez-se dia, e esse dia fez-se manhã, e essa manhã fez-se hora do almoço e picos de tarde, e essa hora do almoço e picos de tarde transformaram-se em hora da sesta, que se ia transformar em hora do lanche até tu me atingires com a tua moca de Gueifães.
E eu nunca esquecerei Tânger.
4 comentários:
eh pah, manel, és mesmo bizarro a escrever. gostei! e não se nota mesmo nada a suposta inspiração que foste roubar aqui à vizinhança do lado. é bestialmente bizarro todo este ambiente bizarro que mistura uma data de planos de história...xD
Muito bom. Exacto, é mesmo "bestialmente bizarro": consegues misturar uma data de coisas sem sentido, mas que dão um pano de fundo forte e diferente.
o teu lado lirico e mesmo confuso: tanger-rio tinto-faraos-cigarros-caracois... ainda hei-de perecber a corrente lógica desta junção de termos!! va la a parte dos "caracois" foi inspirado no meu cabelo..ou não!
vim eu para aqui a pensar chantagear-te com a humilde ideia de "ou levas a minha mochila ou digo quem es oh anonimo!"...mas a sara e a daniela ja disseram quem tu es! :X
Isto porque ainda não sabes que o AKI está em promoções de Natal, senão qual Tânger, qual morte...Ias a correr comprar sacos de estrume para garantir a tua sobrevivência no mundo dos caracóis que sobem aos postes quando se borram de medo dos faraós de duas cabeças!
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