Com a leveza de pena que só um veterano por estas andaças tem e ensina, José Cutileiro desmancha, sem dó nem piedade, o sonho federalista da Europa.
Os últimos desenvolvimentos a nível comunitário levam os mais optimistas a considerar que tudo não passa de um ligeiro atraso, de uma "até ver quando" as mentalidades dos europeus estarão preparadas para aceitar a boa-nova dos federalistas.
A verdade é que, a partir de hoje, o rumo comunitário mudará de rumo. Não se afastará da integração e da cooperação internacional entre os países europeus.
Afastar-se-à, e felizmente, do crescimento megalómano do Parlamento Europeu e das suas pretensões, e o fim de uma conversa de surdos dos supostos defensores da europa dos povos, que não nada mais do que a europa dos partidos.
A Morte da Europa FederalA visão dos Estados Unidos da Europa que animava prós e contras do debate sobre a construção europeia desvaneceu-se em Karlsruhe no passado dia 30 de Junho. O Tribunal Constitucional alemão decidiu que o Tratado de Lisboa, ratificado pelo Bundestag, não era incompatível com a Constituição Alemã mas que a responsabilidade primeira da integração europeia continuava nas mãos dos Parlamentos nacionais, que agem por conta dos respectivos povos, e não do Parlamento Europeu, porque existe neste um "défice democrático estrutural" e porque não há um "povo europeu". O Tribunal só tem alçada sobre a Alemanha, mas como tudo quanto constitua aprofundamento ou alargamento da União é decidido por unanimidade dos Estados-membros, a questão ficou arrumada.
O Tribunal reflectiu sentimento espalhado hoje pela Europa toda, a começar no "motor franco-alemão". A Alemanha, contra cujo expansionismo belicista da primeira metade do século XX se inventou o projecto europeu, sacrificou-se abnegadamente por este durante mais de meio século mas agora sente que expiou a culpa e gosta de se sentir mais alemã do que europeia. Durante a Guerra Fria a França achava que era dona do projecto, mas depois da reunificação alemã percebeu que afinal já não o era e passou a só gostar dele pela ajuda (escandalosa) dada aos seus agricultores. O resto compete com ambições nacionais de fama e proveito. Todavia quer a França quer a Alemanha, bem como a Grã-Bretanha - sempre meia dentro, meia fora - e os 24 parceiros restantes, perceberam claramente as vantagens do projecto perante a crise económica e financeira mundial. A união faz a força e em comércio externo, concorrência, moeda, e também cada vez mais em imigração e energia, o clube é muito mais forte do que todos os seus membros juntos e é o que fará 500 milhões de europeus baterem-se bem pela sobrevivência - de preferência sem guerras - num mundo globalizado (isto é um mundo em que juntos não mandam tanto quanto dantes alguns deles mandavam). Mas super-pátria europeia, com hino, história, bandeira e vidas dadas por ela, não há nem virá a haver.
Mau grado o acórdão de Karlsruhe, quando o Tratado de Lisboa entrar em vigor o Parlamento europeu passará a ter mais poderes ainda dos que os que já tem. Os governos decidiram-no, com especial empenho alemão porque o Parlamento é a instituição europeia onde a Alemanha tem mais peso. Infelizmente o interesse dos povos não acompanha esse zelo elitista: de 62% de votantes nas primeiras eleições por sufrágio universal em 1979 chegou-se a 43% no mês passado. Quando os deputados europeus vinham dos Parlamentos nacionais o fosso entre eleitores e legisladores de Estrasburgo era menor. Haverá urgentemente de tomar medidas correctivas.
Entretanto, uma Europa sem veleidades de supernação mas senhora dos seus interesses poderá ir muito longe, se patriotismos de uns e de outros não tomarem o freio nos dentes. Se tomarem, a aventura de Jean Monnet acabou.
José Cutileiro
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