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quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O Mal em Lautreámont

Queira o céu que o leitor, tornado audaz e momentaneamente feroz à semelhança do que lê, encontre, sem se desorientar, o seu caminho abrupto e selvagem através dos lodaçais desolados destas páginas sombrias e cheias de veneno; pois que, a não ser que utilize na sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo menos igual à sua desconfiança, as emanações mortais deste livro irão embeber-lhe a alma, como a água ao açúcar. Não convém que toda a gente leia as páginas que se seguem; só alguns hão-de saborear sem perigo este fruto amargo. Por consequência, ó alma tímida, antes de penetrares mais longe em tais domínios inexplorados, dirige os teus passos para trás e não para a frente. Ouve bem o que te digo: dirige os teus passos para trás e não para a frente, como os olhos de um filho que se afasta respeitosamente da contemplação augusta do rosto materno; ou, antes, como a visão ao longe de friorentos grous em grande meditação, que, em tempo de Inverno, voam poderosamente através do silêncio, com todas as velas tensas, para um ponto determinado do horizonte, donde parte repentinamente um vento estranho e forte, precursor da tempestade.

Isidore Ducasse (Conde de Lautreámont), Os Cantos de Maldoror

terça-feira, 28 de julho de 2009

Brecht, Niemöller e Pastiche

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho emprego
Também não me importei
Agora levam-me
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

Bertolt Brecht


Um dia vieram e levaram o meu vizinho que era judeu.
Como não sou judeu, não me incomodei.
No dia seguinte vieram e levaram o meu outro vizinho que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei.
No terceiro dia vieram e levaram o meu vizinho católico.
Como não sou católico, não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram;
já não havia mais ninguém para reclamar.

Martin Niemöller

terça-feira, 19 de maio de 2009

A Capacidade Que Vai Faltando

Na Universidade de Chicago também tive a sorte de fazer parte do programa educativo concebido por Robert M. Hutchins, em que a ciência era apresentada como parte integrante da deslumbrante tapeçaria do conhecimento humano. Era considerado impensável um aspirante a físico não conhecer Platão, Aristóteles, Bach, Shakespeare, Gibbon, Malinowski e Freud – entre muitos outros. Na aula de Introdução à Ciência, a perspectiva de Ptolomeu segundo a qual o Sol girava à volta da Terra foi apresentada de uma forma tão atraente que alguns alunos começaram a pôr em causa a sua confiança em Copérnico. O estatuto dos professores no curso de Hutchins não tinha quase nada a ver com a investigação que faziam; curiosamente – ao contrário do que se passa nas universidades americanas nos nossos dias – eram avaliados pelo ensino que ministravam, pela sua capacidade de informar e de estimular a geração seguinte.


Carl Sagan, Um Mundo Infestado de Demónios

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Ele Optou Pelo Culto do Indivíduo

“Ainda por cima, o pavilhão dos cancerosos era o número treze!” É nesta desordem frásica que Alexandre Soljenitsine introduz o leitor na sua obra O Pavilhão dos Cancerosos. Através deste início desconcertado e desconcertante, o leitor mais arguto pode lograr aferir alguns traços (rude aproximação, ainda assim) característicos do autor. “Ainda por cima, o pavilhão dos cancerosos era o número treze!”Soljenitsine, autodidacta, homem sem tempo a perder com arranjos formais e técnicas narrativas intrincadas. De facto, se algo o preocupava, era com certeza a falta de tempo ou oportunidade para deixar registo de tudo quanto queria dizer, informação útil às futuras gerações – compendiada em maçudos volumes para servir à la carte.

Licenciado em matemática; soldado do exército vermelho, do qual seria irradiado por agitação anti-soviética (uma carta enviada a uma amigo na qual questionava as capacidades de liderança de Estaline - José Estaline para os Odisseus). Resultado – cinco anos de trabalhos forçados na Sibéria, curso de horrores que lhe proporcionou o travo amargo de um comunismo desmedido e fratricida que já não era o seu. Escudou-se com versos, diálogos e narrativas que ia construindo mentalmente, numa mnemónica prodigiosa (na fase final do gulag necessitava de sete dias para rever tudo o que havia memorizado). Duas semanas antes do fim da pena, diagnosticaram-lhe cancro em fase avançada, previram-lhe duas semanas de vida… Milagrosamente (Soljenitsine refere nas suas memórias que acredita ter-se tratado de intervenção divina) ocorreu uma remissão do cancro.

Do gulag para o exílio e deste para a “liberdade”, a sua vida impulsionada pelo fervor produtivo (intercalado por pequenos retiros nos quais lia avidamente Hemingway e alguns autores europeus) levou-o ao reconhecimento público, aplauso geral dos intelectuais soviéticos, com o seu Um Dia na Vida de Ivan Denisovich. A obra era marcadamente anti-estalinista, pelo que Nikita (Kruchtchev) a acolheu de braços abertos na sua ânsia de subir ao poder.

Com Nikita no comando da URSS as fileiras de censores voltaram a fechar-se em seu redor, e os seus escritos (abundantes, diga-se), só clandestinamente circulavam. Devemos referenciar, para além do supracitado Pavilhão dos Cancerosos, O Primeiro Círculo, o Arquipélago do Gulag – o seu livro de memórias O Carvalho e o Bezerro, também deve ser tido em linha de conta.

Soljenitsine deve ser lido, deve ser lido com muito respeito e atenção, pelo rigor histórico do seu legado, por ser dos poucos autores que se aventuraram na miséria soviética, por ter vivido na pele a sua gélida cadeia – enfim, por ser um autor mil vezes maldito, renegado ainda hoje pelos comunistas, fazendo-o cair num descrédito que não merece.
Fica, por fim, uma nota para a dificuldade de encontrar os seus livros. Aliás, só um deles é ainda editado (Um Dia na Vida de Ivan Denisovich).


"Dedico este livro a todos quantos a vida não chegou para o relatar. Que eles me perdoem não ter visto tudo, não ter recordado tudo, não me ter apercebido de tudo."
A. Soljenitsine, Arquipélago do Gulag

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura


Hoje escrevo sobre António Lobo Antunes, o melhor escritor português da actualidade. Ler uma obra sua, qualquer que seja, é observar a criação de um objecto inovador e inimitável. A técnica narrativa de Lobo Antunes põe em sentido qualquer grande nome da literatura mundial. Diga-se que a sua escrita dispõe de uma complexidade tremenda, descrições entrecortadas por diálogos, por vezes difíceis de identificar, entre o uso extremado de metáforas e comparações. Lê-lo requer um envolvimento emocional a que muitas vezes os leitores não estão habituados, requer entrega, aliás, uma fracção do que o autor nos dá, justa troca.
Lobo Antunes é, neste momento, o autor que mais merece o Nobel da Literatura; é, se ainda existe justiça na atribuição de tal prémio, quem para tal mais escreve. Não questiono o mérito de Saramago, de facto, o prémio foi-lhe correctamente atribuído, nem tentarei justificar a superioridade literária de Lobo Antunes – deixo isso para quem gosta de se aborrecer.
As suas obras olham o quotidiano, temas banais que mais não desejam ser, versam vivências do autor (principalmente a guerra colonial e as memórias da sua profissão)ect. Não é isto que o destaca mas sim o seu entendimento perfeito dos sentimentos com que pontua as personagens, entidades quase corpóreas, é a crueza do discurso em passagens que se desejavam suavizadas. Mas Lobo Antunes não quer ser suave, diz o que deseja da forma como habitualmente é sentido, homem de aguçado entendimento e engenho. Nas suas palavras: “porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro”.
Deixo um excerto da sua obra Cus de Judas:

“Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute, me escute com a mesma atenção ansiosa com que nós ouvíamos os apelos do rádio da coluna debaixo de fogo, a voz do cabo de transmissões que chamava, que pedia, voz perdida de náufrago esquecendo-se da segurança do código, o capitão a subir à pressa para a Mercedes com meia dúzia de voluntários e a sair o arame a derrapar na areia ao encontro da emboscada, escute-me tal como eu me debrucei para o hálito do nosso primeiro morto na desesperada esperança de que respirasse ainda, o morto que embrulhei num cobertor e coloquei no meu quarto, era a seguir ao almoço e um torpor esquisito bambeava-me as pernas, fechei a porta e declarei Dorme bem a sesta, cá fora os soldados olhavam para mim sem dizer nada, Desta vez não há milagre meus chuchus, pensei eu, fitando-os, Está a dormir a sesta, expliquei-lhes, está a dormir a sesta e não quero que o acordem porque ele não quer acordar, e depois fui tratar dos feridos que se torciam nos panos de tenda, nunca os eucaliptos de Ninda se me afiguraram tão grandes como nessa tarde, grandes, negros, altos, verticais, assustadores, o enfermeiro que me ajudava repetia Caralho caralho caralho com pronúncia do Norte, viemos de todos os pontos do nosso país amordaçado para morrer em Ninda, do nosso triste país de terra e mar para morrer em Ninda, Caralho caralho caralho repetia eu com o enfermeiro com o meu sotaque educado de Lisboa, o capitão apeou-se na Mercedes num cansaço infinito, segurava a arma à laia de uma cana de pesca inútil, o povo da sanzala espreitava receoso lá de baixo, escute-me como eu escutava o rápido latir aflito do meu sangue nas têmporas, o meu sangue intacto nas têmporas, pelos buracos da varanda via o capitão a passear de um lado para o outro apertando o viático de um copo de uísque contra o peito, falando sozinho, cada um conversava sozinho porque ninguém conseguia conversar com ninguém, o meu sangue no copo do capitão, tomai e bebei ó União Nacional, o corpo do morto crescia no quarto até rebentar as paredes, alastrar pela areia, alcançar a mata em busca do eco do tiro que o tocou, o helicóptero transportou-o para Gago Coutinho como quem varre lixo vergonhoso para debaixo de um tapete, morre-se mais nas estradas de Portugal do que na guerra de África, baixas insignificantes e adeus até ao meu regresso, o furriel arrumou os instrumentos cirúrgicos na caixa cromada, os canivetes, as pinças, os porta-agulhas, as sondas, sentou-se ao meu lado nos degraus do posto de socorro, espécie de vivenda pequenina para férias dos reformados melancólicos mordomos idosos, governantas virgens, os eucaliptos de Ninda não cessavam de aumentar, estamos os dois aqui sentados como eu e ele nesses tempo, Abril de 71, a dez mil quilómetros da minha cidade, da minha mulher grávida, dos meus irmãos de olhos azuis cujas cartas afectuosas se me enrolavam nas tripas em espirais de ternura, Foda-se, disse o furriel que limpava as botas com os dedos, Pois é, disse eu, e acho que até agora nunca tive um diálogo tão comprido com quem quer que fosse.”

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O Enterro Prematuro

Dois séculos volvidos sobre o nascimento de Edgar Allan Poe, grande nome da literatura mundial, sobre o seu espólio muitas reflexões terão ainda de ser empreendidas. A nebulosa obra funde-se perfeitamente com a sua vida, não menos misteriosa. Nascido em Boston, a 19 de Janeiro de 1809, viveu uma vida desgarrada, embotada pelo álcool e demais excessos, que o levariam a um enterro prematuro, tinha então quarenta anos (1949).
Numa conferência na Universidade de Belgrano, Jorge Luís Borges refere-o nestes termos: “Poderia dizer-se que há dois homens sem os quais a literatura actual não seria o que é; esses dois homens são americanos e pertencem ao século passado – Walt Whitman – dele deriva o que denominamos poesia civil, deriva Neruda, derivam tantas coisas, boas ou más – e Edgar Allan Poe, que está na origem do simbolismo de Baudelaire, que foi seu discípulo e lhe rezava todas as noites.”
Considero errado referir O Corvo como a sua obra maior. Corvo esse que, não fosse um conto do Charles Dickens, provavelmente seria um papagaio (daí a repetição do never more no final de cada frase). Corvo esse que o próprio Poe desmontou como um jogo de crianças numa conferencia após a publicação.
São os seus inesquecíveis contos que devem ser venerados, monumentos ao insólito, ao sórdido, exercícios do mais puro suspense. Poe criou um género literário, não diria o género macabro ou grotesco, que esse pertence a Lautréamont; diria sim, com Luís Borges, o género policial. Sem ele, provavelmente, não haveria Sherlock Holmes, utilizando sonante exemplo. Ora, este é um inaudito e enorme mérito!
Porém, não só a literatura policial bebe do seu conhaque, peguemos na ponta solta que deixei: Charles Baudelaire. A este autor (outro de inigualável perícia) coube a tarefa de o traduzir para francês, pondo-o a circular rapidamente; por toda a Europa não mais se suspenderam os ecos. Assim, influenciando Baudelaire, caiu no goto de surrealistas, futuristas, e quantos vanguardistas sobrassem no século seguinte.
Hoje, Allan Poe deveria ser mais acarinhado pelos leitores, pois muitos ainda olham as suas obras com desconfiança, como literatura menor. Nada mais injusto.
Ficam algumas sugestões, alguns contos: O Enterro Prematuro; A Pipa de Amontillado; O Gato Preto; Morella; A Esfinge; A Caixa Longa.
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