Hoje escrevo sobre António Lobo Antunes, o melhor escritor português da actualidade. Ler uma obra sua, qualquer que seja, é observar a criação de um objecto inovador e inimitável. A técnica narrativa de Lobo Antunes põe em sentido qualquer grande nome da literatura mundial. Diga-se que a sua escrita dispõe de uma complexidade tremenda, descrições entrecortadas por diálogos, por vezes difíceis de identificar, entre o uso extremado de metáforas e comparações. Lê-lo requer um envolvimento emocional a que muitas vezes os leitores não estão habituados, requer entrega, aliás, uma fracção do que o autor nos dá, justa troca.
Lobo Antunes é, neste momento, o autor que mais merece o Nobel da Literatura; é, se ainda existe justiça na atribuição de tal prémio, quem para tal mais escreve. Não questiono o mérito de Saramago, de facto, o prémio foi-lhe correctamente atribuído, nem tentarei justificar a superioridade literária de Lobo Antunes – deixo isso para quem gosta de se aborrecer.
As suas obras olham o quotidiano, temas banais que mais não desejam ser, versam vivências do autor (principalmente a guerra colonial e as memórias da sua profissão)ect. Não é isto que o destaca mas sim o seu entendimento perfeito dos sentimentos com que pontua as personagens, entidades quase corpóreas, é a crueza do discurso em passagens que se desejavam suavizadas. Mas Lobo Antunes não quer ser suave, diz o que deseja da forma como habitualmente é sentido, homem de aguçado entendimento e engenho. Nas suas palavras: “porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro”.
Deixo um excerto da sua obra Cus de Judas:
“Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute, me escute com a mesma atenção ansiosa com que nós ouvíamos os apelos do rádio da coluna debaixo de fogo, a voz do cabo de transmissões que chamava, que pedia, voz perdida de náufrago esquecendo-se da segurança do código, o capitão a subir à pressa para a Mercedes com meia dúzia de voluntários e a sair o arame a derrapar na areia ao encontro da emboscada, escute-me tal como eu me debrucei para o hálito do nosso primeiro morto na desesperada esperança de que respirasse ainda, o morto que embrulhei num cobertor e coloquei no meu quarto, era a seguir ao almoço e um torpor esquisito bambeava-me as pernas, fechei a porta e declarei Dorme bem a sesta, cá fora os soldados olhavam para mim sem dizer nada, Desta vez não há milagre meus chuchus, pensei eu, fitando-os, Está a dormir a sesta, expliquei-lhes, está a dormir a sesta e não quero que o acordem porque ele não quer acordar, e depois fui tratar dos feridos que se torciam nos panos de tenda, nunca os eucaliptos de Ninda se me afiguraram tão grandes como nessa tarde, grandes, negros, altos, verticais, assustadores, o enfermeiro que me ajudava repetia Caralho caralho caralho com pronúncia do Norte, viemos de todos os pontos do nosso país amordaçado para morrer em Ninda, do nosso triste país de terra e mar para morrer em Ninda, Caralho caralho caralho repetia eu com o enfermeiro com o meu sotaque educado de Lisboa, o capitão apeou-se na Mercedes num cansaço infinito, segurava a arma à laia de uma cana de pesca inútil, o povo da sanzala espreitava receoso lá de baixo, escute-me como eu escutava o rápido latir aflito do meu sangue nas têmporas, o meu sangue intacto nas têmporas, pelos buracos da varanda via o capitão a passear de um lado para o outro apertando o viático de um copo de uísque contra o peito, falando sozinho, cada um conversava sozinho porque ninguém conseguia conversar com ninguém, o meu sangue no copo do capitão, tomai e bebei ó União Nacional, o corpo do morto crescia no quarto até rebentar as paredes, alastrar pela areia, alcançar a mata em busca do eco do tiro que o tocou, o helicóptero transportou-o para Gago Coutinho como quem varre lixo vergonhoso para debaixo de um tapete, morre-se mais nas estradas de Portugal do que na guerra de África, baixas insignificantes e adeus até ao meu regresso, o furriel arrumou os instrumentos cirúrgicos na caixa cromada, os canivetes, as pinças, os porta-agulhas, as sondas, sentou-se ao meu lado nos degraus do posto de socorro, espécie de vivenda pequenina para férias dos reformados melancólicos mordomos idosos, governantas virgens, os eucaliptos de Ninda não cessavam de aumentar, estamos os dois aqui sentados como eu e ele nesses tempo, Abril de 71, a dez mil quilómetros da minha cidade, da minha mulher grávida, dos meus irmãos de olhos azuis cujas cartas afectuosas se me enrolavam nas tripas em espirais de ternura, Foda-se, disse o furriel que limpava as botas com os dedos, Pois é, disse eu, e acho que até agora nunca tive um diálogo tão comprido com quem quer que fosse.”
Lobo Antunes é, neste momento, o autor que mais merece o Nobel da Literatura; é, se ainda existe justiça na atribuição de tal prémio, quem para tal mais escreve. Não questiono o mérito de Saramago, de facto, o prémio foi-lhe correctamente atribuído, nem tentarei justificar a superioridade literária de Lobo Antunes – deixo isso para quem gosta de se aborrecer.
As suas obras olham o quotidiano, temas banais que mais não desejam ser, versam vivências do autor (principalmente a guerra colonial e as memórias da sua profissão)ect. Não é isto que o destaca mas sim o seu entendimento perfeito dos sentimentos com que pontua as personagens, entidades quase corpóreas, é a crueza do discurso em passagens que se desejavam suavizadas. Mas Lobo Antunes não quer ser suave, diz o que deseja da forma como habitualmente é sentido, homem de aguçado entendimento e engenho. Nas suas palavras: “porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro”.
Deixo um excerto da sua obra Cus de Judas:
“Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute, me escute com a mesma atenção ansiosa com que nós ouvíamos os apelos do rádio da coluna debaixo de fogo, a voz do cabo de transmissões que chamava, que pedia, voz perdida de náufrago esquecendo-se da segurança do código, o capitão a subir à pressa para a Mercedes com meia dúzia de voluntários e a sair o arame a derrapar na areia ao encontro da emboscada, escute-me tal como eu me debrucei para o hálito do nosso primeiro morto na desesperada esperança de que respirasse ainda, o morto que embrulhei num cobertor e coloquei no meu quarto, era a seguir ao almoço e um torpor esquisito bambeava-me as pernas, fechei a porta e declarei Dorme bem a sesta, cá fora os soldados olhavam para mim sem dizer nada, Desta vez não há milagre meus chuchus, pensei eu, fitando-os, Está a dormir a sesta, expliquei-lhes, está a dormir a sesta e não quero que o acordem porque ele não quer acordar, e depois fui tratar dos feridos que se torciam nos panos de tenda, nunca os eucaliptos de Ninda se me afiguraram tão grandes como nessa tarde, grandes, negros, altos, verticais, assustadores, o enfermeiro que me ajudava repetia Caralho caralho caralho com pronúncia do Norte, viemos de todos os pontos do nosso país amordaçado para morrer em Ninda, do nosso triste país de terra e mar para morrer em Ninda, Caralho caralho caralho repetia eu com o enfermeiro com o meu sotaque educado de Lisboa, o capitão apeou-se na Mercedes num cansaço infinito, segurava a arma à laia de uma cana de pesca inútil, o povo da sanzala espreitava receoso lá de baixo, escute-me como eu escutava o rápido latir aflito do meu sangue nas têmporas, o meu sangue intacto nas têmporas, pelos buracos da varanda via o capitão a passear de um lado para o outro apertando o viático de um copo de uísque contra o peito, falando sozinho, cada um conversava sozinho porque ninguém conseguia conversar com ninguém, o meu sangue no copo do capitão, tomai e bebei ó União Nacional, o corpo do morto crescia no quarto até rebentar as paredes, alastrar pela areia, alcançar a mata em busca do eco do tiro que o tocou, o helicóptero transportou-o para Gago Coutinho como quem varre lixo vergonhoso para debaixo de um tapete, morre-se mais nas estradas de Portugal do que na guerra de África, baixas insignificantes e adeus até ao meu regresso, o furriel arrumou os instrumentos cirúrgicos na caixa cromada, os canivetes, as pinças, os porta-agulhas, as sondas, sentou-se ao meu lado nos degraus do posto de socorro, espécie de vivenda pequenina para férias dos reformados melancólicos mordomos idosos, governantas virgens, os eucaliptos de Ninda não cessavam de aumentar, estamos os dois aqui sentados como eu e ele nesses tempo, Abril de 71, a dez mil quilómetros da minha cidade, da minha mulher grávida, dos meus irmãos de olhos azuis cujas cartas afectuosas se me enrolavam nas tripas em espirais de ternura, Foda-se, disse o furriel que limpava as botas com os dedos, Pois é, disse eu, e acho que até agora nunca tive um diálogo tão comprido com quem quer que fosse.”
1 comentário:
Meu caro, estou precisamente agora a ler este livro e percebo exactamente o que queres dizer :)
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