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domingo, 23 de maio de 2010

o réu vai nu


quando ontem fui assistir à apresentação do livro do Lourenço (este aqui, da editora Mosaico) admito que o pouco que sabia da arte do Lourenço espalhava-se por algumas conversas e os poemas que li, feitos por ele, na blogosfera.

Algumas coisas ficaram por dizer na apresentação do Mário Lourenço, e penso que só ficaria bem dizê-las aqui.

O Mário gozou de uma educação verdadeiramente europeia, tradicionalmente europeia, que lhe concedeu desde muito cedo uma liberdade de pensamento que muitos de nós, nem na faculdade, consegue alcançar.

Para o Mário, há algo mais na poesia que o capricho, a choraminguice, a névoa fácil de intelectualidade que se torna a moda dos afrancesados deste século.

O Mário não passou pela escola do Material. A educação que obteve nos seminários de Lamego e Resende plantou nele a semente do Homem.
O Mário concebe a Pessoa e conhece Deus. Ou deve dizer-se ao contrário? Enfim. Pouco mais é preciso a um Poeta.

A Poesia de Mário Lourenço vive do diálogo sereno e civilizado com ele próprio, diálogo esse que não deixa de ser, várias vezes, uma discussão a roçar um partir de pratos à italiana.
Uns chamam-lhe intelectualização da Poesia. Eu penso que esta é a maior capacidade de transcendência. Lourenço aproxima-se da Essência através da Razão.

Não admira. Afinal, foi um aluno de Teologia.

Esta tendência está fincada na sua percepção de perda deste canal com Deus:

Retrocede minha alma ao estado germinal
do pâncreas ao fígado torno-me apenas animal
e na mente faz-me esquecer quem eu sou

Todas as artes, no entanto, têm os seus vícios. Nas suas lições de Teologia, Mário caiu no erro da Gnose. A divindade retirada de toda a acção humana. A mera percepção do erro para resolver o poema:

A Gnosis

Temos de admitir o problema
e o verdadeiro problema é admitir o erro
Resolvido está o problema
a sua não-existência
a sua imaterialidade diagonal

Estará aqui a semente da heresia no poeta? Ou será um desabafo cansado, um jogo de palavras?

A poesia de Mário é quase-perfeita quando define o Mundo.
É algo pouco português, pelo menos recente. Whitman declara a vitória da democracia, e à frente dela, a palavra en masse.
Mário retira da influência do Mundo Vazio (que às vezes o esvazia a ele) o Credo das novas gerações pagãs:

Credo

Creio em uma só descrença
Pai e Mãe de toda a existência
que do alto alicerce se nos revela

sexta-feira, 5 de março de 2010

aos Iluminados

Cronologias e mapas, acontecimentos

Actividades consolidadas, processos

democráticos alçados sobre tempos

Vontades, sementes de retrocessos


Inspirações cortam por vezes razões

desconhecidas que próprios criamos

tantas vezes humilhamos decisões

erradas do que de irrefutável julgamos


Conceptualizam-se iluminados

com a mente que nas relações

em vão se vêem escuridões


Quando falham nas pobres razões

percebem quanto de si são criados

e quanto vale terem ficado calados


5/03/2010


Poeta-taberneiro

domingo, 28 de fevereiro de 2010

imatéria: penumbra anacrónica

Auspícios de vertentes determinadas
pelo fumus-arquétipo do plano devir;
As falácias minuciosas do breve sentir
ao âmago do pathos tristes e oscultadas!

Oh! Miserável imatéria absorvida!
És indelével na absolvição do desejo!
Gritas do vale pleno da própria vida
em fúrias, na sombra dum fugaz beijo

Leve e em penumbra desorientado
o horizonte anulado pelo contra-átomo;
Rompe os estigmas, e ao céu içado
pede ao fugaz tempo o próprio cálamo (!)

Não tenho morada no Universo...
Astros me expulsam da matéria!
Meu onthos se defuma disperso,
E meu ser poeta se dilui na miséria...

Lourenço

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Tópica ao Ser

O outro - eu que vinga, mata e esfola a razão!

O outro - eu que nunca existiu

na matéria, mas em pensamento.

O supra-ego que me controla o infra-eu.


Nunca o controlo fora ausente.

e eu pensava exactamente o contrário.

( Em vão.

Havia afinal um hiper-ego que me mantera quieto.

À sua direita, o supra-ego me mantinha racional.


E eu não sabia quem eram, porque superiores.

E o meu corpo somático me mantinha preso

E eu pensava ser apenas mais um ser surreal.


Tudo um sonho de quem se deixa esvaír pela linguagem


Eu não era aquele outro-eu vigilante e desmesurado

Nunca o seria sem um código que me amputasse o ego.


Quem me garante que deixe este eu para passar a ser o outro?

Assim, onde o tempo não conta, onde a vontade não impera,

Assim surge o princípio da negação de si mesmo

E eu nego este eu que nunca fui, e aquele que nunca serei.

Não me explicam a origem nem fim, apenas ser enquanto ser.


Não caminhamos para o retorno donde vimos.

Seria inglório ao ser. Seria voltar a não-ser,

Seria voltar ao nada perplexo.

Ao nada anterior ao acto que fomos.

Seria apagar todos os factos.

seria limpar-nos a história.

seria queimar-nos o nome

dizimar-nos a própria honra.


18/02/2010


Lourenço

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Declaração sobre assuntos académicos e cenas cá do blogue

Pelo menos 50% dos leitores deste blogue vêm cá por causa da descrição que aparece logo no canto superior esquerdo deste blogue: isto que dizer que a restante metade de leitores que nada têm que os ligue aos problemas internos da FDUP tenham, por vezes, que gramar com coisas que lhes parecem ser do "arco da velha".
É com sincero pesar que vos digo, ó visitantes longínquos, que este é (em parte) mais um desses textos.

Começo assim com a parte que poderá interessar à generalidade dos leitores:
Esta casa tem mais um autor, como os mais atentos entre vós já se deram conta.
O Mário Costa Lourenço não é novo nestas andanças, no que toca à blogosfera nem no que toca à Academia. Tem bastantes provas dadas.
Alguns de vocês podem ter lido alguns textos dele no blogue daquele colectivo que permaneceu no anonimato, a Legião, e podem agora visita-lo num blog pessoal.

Tendo conhecimento das reacções negativas que a Legião levantou, e o envolvimento do Mário, qualquer outro se sentiria levado a justificar a sua entrada, como já em anteriores entradas para o clube de autores deste blog se pediu. O Café Odisseia, enquanto baluarte do bom-gosto e da liberdade de expressão, e criação pessoal de um grupo de "arqui-liberais reaccionários", aristocratas decadentes, não vai cair nessa republicanice do "prestar contas".

O MCL vem reavivar um pouco o contacto do Café com a sua Faculdade. E também inaugurar um espaço poético de sua autoria.
Oxalá encontres ânimo para escrever aqui muitas e muitas vezes, Mário, és bem-vindo e sabe-lo bem. Senão, olha, que se lixe.

O outro assunto que vos pretendo falar é da campanha que um dos autores deste blogue vai encetar (o mpr), usando os meios de comunicação ao meu dispor, para as eleições para o Conselho Pedagógico e Assembleia de Representantes da FDUP, em que vou participar como suplente de uma das listas.
Como a minha participação nas coisas académicas está altamente condicionada por uma crónica falta de tempo e excesso de outros projectos, sinto que é minha obrigação usar o meu blogue, o Café Odisseia, para ser de algum uso para as pessoas em que acredito fortemente serem gente com carácter e valor para servirem os os estudantes da FDUP nesses cargos.

Os textos que versarão sobre esses temas virão com o título Assuntos Académicos.

sábado, 25 de julho de 2009

Suave Motim

ouvir aqui.

[Interview]
[Well, where are you coming from?]

Well, I don't like the way the country's ran,
don't you know, and um,that's pretty much
what i was expressing in my poem.

The government, the American government,
they're sneaky, they're very deceitful,
they're liars, they're cheats, they're ripoffs.

I mean, the American government is one
systematic government that, that nobody
can trust. I don't trust them myself.

[And how long have you been writing for?]

Huh?

[How long have you been writing for?]

Since I was four.

[Do you do this sort of thing a lot,
Like, open mic kinda questions?]

Oh I love open mics, I love coming
here doing open mics, absolutely.

[What kind of reactions do you usually get?]

Usually, people are, are pretty much
in agreement with what I'm saying.

[We overheard you before talking about
You went to court today for a speeding ticket?]

That's accurate.

[Right. Do you wanna tell us that story?]

Yes, absolutely, I wouldn't mind telling you the story.
Um, I went to court today for a speeding ticket,
and I told the judge, um,

"Let me tell you something, and you listen
and you listen good. I'm only gonna say this
one time and one time only.
I don't repeat
myself for nobody," I said.
I says,
"I'm here to pay a speeding ticket, not to listen
to your lectures and hear you run your mouth
for an hour." I says,
"I'm here to pay off my speeding ticket, and I'm
here to get my fines out of the way and get the
fuck to work."

The judge says, "You can't talk like
that in my courtroom, you're in
contempt of court."

Then I said, I told the judge,
"If that's the best you can do, I feel sorry for you."
I said, "Why don't you just shut your fucking
mouth for once and listen."
I said, "I'm not gonna take any shit."
I said, "I'm gonna pay my speeding ticket like I said."
I walked up to the goddamn bench and I
handed him my 25 dollars and
I says, "Here's my money, now I am leaving."

And I left it at that...

Then before I left, I turned around
and told the judge,
"I'm here to
state who I am and be honest with you."
I said "If they thought I was dangerous
on the road like you're trying to
accuse me of, wouldn't they have
taken my license when I first got it?
Yes they would."

And the judge says "Yeah, you have a point,"
He goes, "You don't need to get loud.

I said, "Don't get loud?"
I says, "I've got every right
to get loud." I says, "You
can't do a goddamn thing
about it, because I'm expressing
myself in your court, and
there is nothing you can do
about it.
You think you're god because
you have a robe and you can
put people up the goddamn
river for 20 years? Well you're not."

And I left it at that...

[Did you walk away?]

Yes I did. I don't like the judicial system,
I don't like the government system,
I don't like the police, I don't like anything to do with this country's government.
I just don't like it,
because, they're sneaky, like I said, they're deceitful, they're lying,
they're cheats, they rip the people off. That's the American government for you. America is a third world country, and people don't recognise it, and i think
that that's pretty goddamn sad that
they don't recognise their own country
as a third world, third rate, third class slum.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

A Faca Não Corta o Fogo


"Até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza".
Herberto Helder, A Faca Não Corta o Fogo

terça-feira, 19 de maio de 2009

Cristo Perante Anás


Olha os meus olhos e vê quantos demónios
os teus olhos vêem. Sendo tu que os vês,
estes demónios sendo meus são teus.
Sendo teus os demónios que tu vês
são os teus olhos que tu vês nos meus.
E assim há-de ser para todo o sempre

Amadeu Baptista, Antecedentes Criminais

segunda-feira, 27 de abril de 2009

O Século das Nuvens (II)

Apresento-vos alguns dos Calligrammes de Guillaume Apollinaire:






O Século das Nuvens (I)




Gui Canta Para Lou

Querida Lou queria morrer num dia em que me tivesses amado
Queria ser bonito para que me amasses
Queria ser forte para que me amasses
Queria ser jovem para que me amasses
Queria que a guerra começasse outra vez para que me amasses
Queria-te prender para que me amasses
Queria-te dar palmadas nas nádegas para que me amasses
Queria-te pisar para que me amasses
Queria ficar só contigo num quarto de hotel em Grasse para que me
amasses
Queria que fosses minha irmã para eu te amar incestuosamente
Queria que fosses minha prima para que nos amássemos desde criança
Queria que fosses o meu cavalo para eu te montar durante muito tempo
Queria que fosses meu coração para te sentir bater dentro de mim
Queria que fosses o paraíso ou o inferno de acordo com o lugar
onde me encontre
Queria que fosses um menino e eu o teu preceptor
Queria que fosses a noite para nos podermos amar no escuro
Queria que fosses a minha vida para poder existir só por ti
Queria que fosses um obus boche para me matar de súbito amor
Guillaume Apollinaire, O Século das Nuvens

domingo, 5 de abril de 2009

Boris Vian, poeta surrealista



Tudo foi dito cem vezes
E muito melhor que por mim
Portanto quando escrevo versos
É porque isso me diverte
É porque isso me diverte
É porque isso me diverte e cago-vos na tromba

Boris Vian

segunda-feira, 30 de março de 2009

Cena do Ódio

Novamente Almada Negreidos, desta feita, por Mário Viegas:






Encontram aqui o poema completo.

quarta-feira, 18 de março de 2009

O Aluno da Última Fila

Manuel Alegre, quase-herói de Abril, encafuado na Argélia, num exílio dandy, a pedir notícias ao vento:

Trova ao vento que passa

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio - é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

domingo, 15 de março de 2009

"Que Almada Negreiros não é um génio — manifesta-se em não se manifestar"


O iconoclasta Almada Negreiros assim escrevia no primeiro número da revista Orpheu:

A Taça de Chá

O luar desmaiava mais ainda uma máscara caida nas esteiras bordadas. E os bambús ao vento e os crysanthemos nos jardins e as garças no tanque, gemiam com elle a advinharem-lhe o fim. Em róda tombávam-se adormecidos os idolos coloridos e os dragões alados. E a gueisha, procelana transparente como a casca de um ovo da Ibis, enrodilhou-se num labyrinto que nem os dragões dos deuses em dias de lagrymas. E os seus olhos rasgados, perolas de Nankim a desmaiar-se em agua, confundiam-se scintillantes no luzidio das procelanas.

Elle, num gesto ultimo, fechou-lhe os labios co'as pontas dos dedos, e disse a finar-se:--Chorar não é remedio; só te peço que não me atraiçoes emquanto o meu corpo fôr quente. Deitou a cabeça nas esteiras e ficou. E Ella, num grito de garça, ergueu alto os braços a pedir o Ceu para Elle, e a saltitar foi pelos jardíns a sacudir as mãos, que todos os que passavam olharam para Ella.

Pela manhã vinham os visinhos em bicos dos pés espreitar por entre os bambús, e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto com um leque de marfim.

A estampa do pires é igual.

Almada Negreiros, in 'Frisos - Revista Orpheu nº1'

sábado, 14 de março de 2009

a prole

as fragas nos montes, ao pé da minha casa,
escondem, segundo as lendas dos povos da baixa serra
as sepulturas de reis antigos,
que percorreram a terra quando esta era jovem.

estes reis de granito e erva
mais não são que os atlantes perdidos,
filhos do Prometeu Dador do Fogo
raça amada pelos deuses, educadores dos Homens

navegaram eles os domínios de Poseídon
e combateram ao lado dos Olímpios
a fantástica Guerra dos Titãs
onde a Mãe Gaia viu os seus filhos despedaçarem-se

cansada a Raça Grande,
extenuado o úbere espírito navegador,
entregaram-se ao Oceano,
deixando sós os seus soberanos em repouso.

destes túmulos de pedra, de uma sabedoria perdida
nos dias dos primeiros reis da Terra,
está conservada a energia antiga dos Dias Primevos.
em que os Deuses falavam com os Homens de igual para igual.

nisto acreditava Torga, O Adormecido
e viu Pessoa, O Mensageiro,
pressagiou-o Bandarra, O Que Não Existiu, filho do Existente Vieira
quando expirou o sonho de Um Império de Consciência.

Post Scriptum:
Feliz o doce sacrifício do povo alvo e ardente
poupado ao esforço deste poeta agoniante.
Antes desaparecer de vontade, a ser forçado residente
da mesquinha prole de extinta raça Gigante.

domingo, 8 de março de 2009

outras coisas

Sou de outras coisas
pertenço ao tempo que há-de vir sem ser futuro
e sou amante da profunda liberdade
sou parte inteira de uma vida vagabunda
sou evadido da tristeza e da ansiedade

Sou doutras coisas
fiz o meu barco com guitarras e com folhas
e com o vento fiz a vela que me leva
sou pescador de coisas belas, de emoções
sou a maré que sempre sobe e não sossega

Sou das pessoas que me querem e que eu amo
vivo com elas por saber quanto lhes quero
a minha casa é uma ilha é uma pedra
que me entregaram num abraço tão sincero

Sou doutras coisas
sou de pensar que a grandeza está no homem
porque é o homem o mais lindo continente
tanto me faz que a terra seja longa ou curta
tranco-me aqui por ser humano e por ser gente

Sou doutras coisas
sou de entender a dor alheia que é a minha
sou de quem parte com a mágoa de quem fica
mas também sou de querer sonhar o novo dia

Fernando Tordo

quinta-feira, 5 de março de 2009

Livro de Horas


Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.

Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três,

e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.

Me confesso
o dono das minhas horas
O das facadas cegas e raivosas,
e o das ternuras lúcidas e mansas.

E de ser de qualquer modo
andanças
do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!


Miguel Torga

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Em Todo o Caso...



A minh’Alma fugiu pela Torre Eiffel acima,
- A verdade é esta, não nos criemos mais ilusões –
Fugiu, mas foi apanhada pela antena da T.S.F.
Que a transmitiu pelo infinito em ondas hertzianas…

(Em todo o caso que belo fim para a minha Alma!...)

Mário de Sá-carneiro
Paris, Agosto 1915

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Um Povo Menino

Cesariny volta ao Odisseia, diz umas verdades, deixa um poema e desaparece:



Há uma hora, há uma hora certa

"Há uma hora, há uma hora certa
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Há uma hora, desde as sete e meia horas da manhã
que um milhão de pessoas está a sair para a rua.
Estamos no ano da graça de 1946
em Lisboa, a sair para, o meio da rua.
Saímos? Mas sim, saímos!
Saímos: seres usuais, gente gente! olhos, narinas, bocas,
gente feliz, gente infeliz, um banqueiro, alfaiates, telefonistas,
varinas, caixeiros desempregados,
uns com os outros, uns dentro dos outros
tossicando, sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo aos
mictórios para apanhar eléctricos,
gente atrasada em relação ao barco para o Barreiro
que afinal ainda lá estava apitando estridentemente,
gente de luto, normalmente silenciosa
mas obrigada a falar ao vizinho da frente
na plataforma veloz do eléctrico, em marcha,
gente jovial a acompanhar enterros
e uma mãe triste a aceitar dois bolos para a sua menina.
Há uma hora, isto: Lisboa e muito mais.
Humanidade cordial, em suma,
com todas as consequências disso mesmo
e a sair a sair para o meio da rua."


quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Sociedade da Incerteza


Nesta sociedade de risco ou da incerteza, onde permanecemos incautos cidadãos, “o medo vai ter tudo”. Deixemos que Alexandre O’Neill nos elucide:

Poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com a certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

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