segunda-feira, 5 de abril de 2010

conceitos inconciliáveis - liberalismo e democracia

Afinal, que tem a maioria de especial? Como se pode elevar a superioridade numérica a um princípio sem estrangular ou destruir outros, primordiais, princípios? Só um utilitário pode, afinal, defender a felicidade do maior número em vez do simples conceito de justiça. Nenhum deles assumirá que «a maioria» pode suprimir os direitos da «minoria», no entanto essa é a conclusão lógica, implícita e experimentada do ideal democrático. Hoje, o voto legitima quase diariamente os actos despóticos de governos que não exercem apenas essa autoridade sobre «a maioria» que os elegeu, mas sobre a população inteira. A massiva redistribuição de riqueza de produtores para parasitas (e nestes contam-se tanto os moradores de bairros sociais como os administradores da EDP); o Estado social e o Corporativismo que corrompe moralmente toda a população; a progressiva e imparável supressão da liberdade individual, da liberdade de contrato, da liberdade de exclusão – ou seja: do direito de um indivíduo de dispor da sua propriedade como lhe aprouver sem interferir na habilidade de outros disporem da sua; o proselitismo compulsório que é imposto às crianças e a obediência submissa que é imposta aos adultos pela suposta legitimidade concedida pela maioria ao governo. Afinal, que nos trouxe a democracia senão o afastamento progressivo de princípios e práticas liberais?

Mas se já é triste a continuação da superstição democrática entre liberais, é mais triste a superstição pior de que existe alguma legitimidade na dominação militar para promover o ideal democrático (ou, já agora, qualquer ideal). Visto que quase todos os liberais vêm da direita, torna-se ainda mais estranho vê-los apaixonados por uma ideia tão trotskista. Essa é, porém, a natureza dos «liberais-democratas-militaristas». Para eles, o «policiamento e administração do mundo» é uma legítima função do «império americano-europeu», e o apoio às instituições-base dessa função (como o FMI, o Banco Mundial ou a NATO) é quase sempre automático e acrítico (naturalmente sem nunca pôr em causa a ideia ou as instituições em si). Não raramente, apoiam guerras ofensivas e injustificadas pela mesma ordem de razões – falhando em separar a propaganda estatal da realidade como seria de esperar de liberais.

Os democratas-liberais vivem dois eternos paradoxos. O primeiro é que a sua defesa da democracia como princípio é incompatível com o princípio de liberalismo; o segundo é a sua defesa da não-intervenção do Estado em assuntos internos e simultânea defesa da intervenção nos assuntos de outras nações pelo mesmo Estado.

Mas como é possível gerir um Estado – mesmo mínimo -, de forma a representar os interesses da população (ou pelo menos de uma boa parte dela), sem o processo democrático? A reposta é «não é possível». Por duas razões: a primeira é que um Estado democrático nunca poderá ser mínimo, sobretudo a longo prazo; a segunda é que um Estado não-democrático também não pode ser mínimo, sobretudo a longo prazo. Mas a ideia de democracia só é necessária dada a existência de um Estado, outra instituição com fundamentos utilitários. Da mesma forma que só o liberalismo utilitário permite a defesa da democracia, também só este permite a defesa do Estado: e o atropelo dos princípios liberais é inevitável. Contrariamente, a consequência natural do pensamento liberal é o anarquismo, a ausência de autoridade arbitrária e a sociedade contratual e voluntária. Por outras palavras: mesmo um Estado mínimo viola os princípios fundamentais do liberalismo e necessita de ferramentas contrárias a eles.

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