domingo, 28 de setembro de 2008

a casa da lavoura

Hoje fui almoçar a uma casa de lavoura. Para quem não sabe, uma casa de lavoura é muito diferente de uma casa de campo. Para começar, as pessoas ricas não têm casas de lavoura. Têm casas de campo. Os lavradores, os que vivem do campo, têm casas de lavoura.
A casa de lavoura onde eu fui hoje estava muito desarrumada, estava semeada de tralha por cada canto. Vivem lá dois tios meus muito antigos. Prefiro dizer antigo a dizer velho, porque velho, hoje em dia, quer dizer gasto, e eu não considero as pessoas sujeitas ao gasto.
Ao contrário de uma casa de campo, a casa de lavoura não está hermeticamente limpa. A casa de campo é feita para agradar a nós, pessoas da cidade, que lemos blogs e comemos sushi em estabelecimentos aprovados pela ASAE. A casa de lavoura tem cães grandes e maus, tem gatos grandes e matreiros. A casa de campo tem "labradores" dóceis e hormonalmente disfuncionais, e gatos pequeninos. É que uma casa de lavoura serve para dar dinheiro da lavoura. E a lavoura protege-se. No campo, o que não falta é campo.
Continuando o relato do meu dia, na casa de lavoura comi um assado de coelho como não se verá nos próximos tempos. Cozinhar como a minha tia E. não é para qualquer um. E um coelho assado não é trabalho para as mãos fragéis de um chef. É preciso cozinhar com amor e bruteza. E depois apreciar um resultado que, o que não tem de divinal, tem de belamente humano.
O meu tio C., que está muito velho, ainda vai atirando uns piropos à tia E., que não leva a bem. Não gosta que digam bem dela. Gosta de me ouvir falar, sabe que eu estudo Direito, que tenho muita razão, e dá-lhe gosto saber que está a alimentar um pelintra como eu. Porque podemos levar todos muito facilmente de engano, mas à tia E., advogados do mundo desafio-vos. Mas ouvir piropos e historinhas, não. Gosta de mim porque sabe que sou um pelintra que não mente nem bajula, e por isso fala comigo.
Sentada, depois do café, com as grossas mãos sobre a mesa, em postura de jogar cartas, põe a conversa em dia comigo. Falamos no curso. Ela interrompe-me, a mim que dizia alguma coisa superficialmente inteligente e que seria tomada no meu grupo de conhecimentos como algo mais que aceitável e interessante, e apontando para o meu tio C. diz-me:
- Aquele, aquele sim é um bom homem. Um bom homem tem sempre as contas em dia. Nos tempos da Sociedade, e ele era presidente, apesar de mal saber escrever, Manel, ele negociava com os Doutores vender um pipo de vinho por "xis" dinheiro. E passando dois dias vinham-lhe dizer , "oh senhor C., olhe que o pipo está mais caro" e ele mesmo assim recusava-se a mudar a palavra dada. Dizia ele que o dinheiro valia menos que a palavra. E dito isto, lá ia ele para a lavoura com os 50 homens da sociedade, e mesmo ganhando menos dinheiro, ele trabalhava para cumprir a palavra dada. E quando lhe vinham falar sobre faltar uma vaca, ou um boi, um cavalo, ele dizia-lhes para irem ver ao Livro, o Livro onde os Doutores registavam as coisas, e ver que estava tudo lá anotado. Um homem que faz as suas contas é um homem honesto.
O meu outro tio, o do Brasil, que é mais português que eu, diz nessa altura:
- No negócio lá no Rio, teve um cara que me enganou num negócio e voltou atrás com a palavra dada. Nunca mais eu lhe vendi nada. Agora passa a vida atrás da gente para comprar e vender, e eu nunca lhe dou bola. Perdeu um cliente, não é? Porque não soube manter a palavra.
E de facto o tio do Brasil tinha toda a razão. Remata assim a tia E.:
- Até ao final da profissão o tio C. sempre cumpriu a palavra. Sempre fez as suas contas, homem de poucas palavras, mas sempre recto. E por isso as pessoas ainda gostam dele. Porque ele nunca enganou ninguém. E se todos os Homens fossem assim, podes acreditar que hoje em dia não haveria guerras por esse Mundo fora.
Após este discurso, que eu temo ter embaraçado qualquer leitor que se preza a passar por este meu espaço público e feito para coisas do fôro público, pode-se perguntar qual a lição a tomar daqui.
Eu tive uma educação priveligiada. Andei em colégios privados, e conheci professores que não só me ensinaram a ser interessado, como deram asas à minha sempre precoce ânsia de saber. Na escola pública, onde andei os 3 anos antes de entrar no ensino superior, encontrei professores que, não só se tornaram amigos, como verdadeiros guias.
Na minha faculdade conheci e conheço homens e mulheres magníficos, todos eles fruto do estudo de uma vida inteira em procura da sabedoria. Muitos deles nem sequer são professores, são alunos como eu.
E naquele dia, uma mulher com quase 70 anos, e com menos do que a 3º classe, era capaz de lhes dar uma aula a todos, sobre coisas que eles já sabem, mas que poucos tiveram o privilégio de ouvir da forma que eu, toscamente, tentei reproduzir aqui.
E é por causa disto que eu mantenho a minha crença firme em não aceitar, para modelo de organização da sociedade dos homens, qualquer tipo de ideia utópica ou perfeccionista. Acho que, sem dúvida, a minha tia E. tem mais razão que Marx, Friedman, Freud ou Popper. De facto, se todos os homens mantivessem a sua palavra da mesma maneira que o meu tio C., não haveria guerras nem sequer fome neste mundo.
PS: Nestas terras de casas de lavoura, pouco interessa o nome que nos dão. Importa mais o nome que levámos. E esse nome não é atribuido pela família, mas antes pela casa em que nascemos e somos criados. E assim as características que a precedem são seguidas por essas pessoas, como é o caso dos Orfãos, que é uma dessas alcunhas lá da terra em que as pessoas são levadas, e que faz com que todos saibam que os Orfãos são descendentes de uma família de pessoas solitárias e soturnas na maior parte das vezes. A alcunha que o meu tio C. levava era a de Catão. Os Catão, homens bons na gíria popular, são aquilo pelo qual são chamados. Se há alguma relação com o Catão romano, esse antigo homem bom, isso não sei. Mas que as semelhanças são muitas, isso são.

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