sábado, 13 de dezembro de 2008

Os Animais Carnívoros

Herberto Helder, autor português de topo, figura velada, recluso de si próprio. Homem de poucas palavras, remete-as para a sua magnifica obra: criação de excepção, tão original quanto perturbadora. Não concede entrevistas, recusa qualquer prémio (inclusive o Prémio Pessoa em 1994). É dos poucos autores lusos com possibilidade de receber o Nobel da Literatura.
Sem mais delongas, deixemo-nos guiar pelo maior poeta português vivo:


Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo
sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia
depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um
parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais
diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, desco-
bria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava
impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o
que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e
urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às
nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então
os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha
intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora
era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos
eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era
uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas
abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas


(poema Os Animais Carnívoros)

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